Anexo Casa Lacerda
[projeto] Lapa, Paraná Ano do projeto: 2019 Autoria: Thiago de Andrade, Manoel Fonseca, Zé Henrique Freitas e Luiz Otavio Rodrigues Colaboradores: Juliana Dullius, João Boavista Rodrigues e Gustavo Santos Memória: O espaço arquitetônico é mais feliz nos espaços de transição. É onde ele se realiza de forma mais profundamente artística, desvinculando-se do dilema fundamental das artes aplicadas: não pode ou não deve ser considerada arte aquela que tem utilidade. É nesses espaços que a pessoa percebe intenções e toda a profunda relação que o edifício estabelece com a paisagem, com o contexto, com a configuração e a aposição de uma segunda natureza ao lugar. A arquitetura moderna brasileira se notabilizou por uma série de inovações a partir da matriz europeia latina. Destacaram-se a artesania e a maestria no trato com as possibilidades da plasticidade do concreto armado e da estrutura independente das vedações. Pilotis, grandes vãos, balanços, praças cobertas e descobertas, varandas, terraços, brise-soleil. A exploração das possibilidades que essa desvinculação oportunizou em termos de explosão do uso dos espaços e elementos de transição, com grandes planos abertos e espaços sem paredes ou qualquer vedação que o clima tropical permitiu, passou, paulatinamente, a ser a grande contribuição da arquitetura brasileira à cultura arquitetônica mundial. Para a presente discussão colocada por este Concurso, destaca-se, ainda, o fato de que a vanguarda artística brasileira formulou a teoria nacional sobre o patrimônio cultural. Fez evoluir e materializou um processo claudicante iniciado no século XVII. A amplitude e competência do anteprojeto de Mario de Andrade e sua simplificação pragmática e realista constante no Decreto-Lei 25 de 1937 instituíram com raízes profundas a nossa política de preservação cultural. Os modernos visibilizaram o passado em amplas perspectivas culturais, reconhecendo as manifestações imateriais e uma antropologização do conceito de cultura para além da ideia puramente artística ou histórica. Fundaram nossa perspectiva de preservação. Claro que não sem dogmas, não sem atropelos ou sem autoritarismos típicos da época e do próprio modernismo. As ações iniciais do então SPHAN, na década de 1930, já se defrontavam com o problema fundamental da preservação de sítios históricos urbanos e obras arquitetônicas vivas, para além do patrimônio arqueológico ou puramente histórico: elas continuam a ter uma função social e por isso mesmo, culturalmente, estão em constante transformação; deparam com profundas contradições impostas pelos câmbios tecnológicos; têm uma função turística e econômica que podem reforçar sua própria noção coletiva de bem a ser preservado. Por isso, parece-nos adequada a preocupação do Termo de Referência em “ampliar possibilidades de uso e apropriação social” e em “pretender estimular as práticas de projetos de arquitetura contemporânea em áreas de valor cultural, promovendo o debate e a reflexão entre as possibilidades de diálogo entre o antigo e o novo.” A força e a dominância do moderno em nosso campo de conhecimento estão em xeque após a recuperação de sua hegemonia no país, superada a fase crítica ensaiada pelo pós-modernismo arquitetônico. O que nos parece é que atualmente há um domínio de um neomoderno acrítico, que não se assenta mais sobre as mesmas perspectivas sociais e estéticas da vanguarda moderna, mas que vem respondendo estilisticamente aos novíssimos problemas sociais. Traços fundamentais da contemporaneidade líquida são a fluidez e a validade de arranjos conceituais conforme a conveniência das perguntas e problemas colocados. Este concurso, portanto, é uma oportunidade de se ensaiar a validade de novas articulações no território que visem responder ao problema da paisagem colocada pela cultura, que ressalte a beleza dos espaços de transição da Casa Lacerda, especialmente o pátio em tijoleira, expandindo-o com um novo rigor intencional que se faça compreensível aos visitantes e trabalhadores do museu-casa e da nova Casa do Patrimônio que ali se potencializará. Duas premissas básicas foram adotadas e associadas. A primeira de caráter mais amplo e urbano: o conjunto urbanístico da Lapa contém 10 locais de interesse cultural e histórico que podem ser articulados a partir da intervenção na Casa Lacerda e da nova Casa do Patrimônio - Anexo e seu entorno imediato. A segunda, de caráter arquitetônico, em obediência ao Termo de Referência, mas também com uma profunda concordância de que a nova edificação deve respeitar visadas e gabaritos a partir das salas e varanda lateral da Casa Lacerda e do pátio em tijoleira: valorizar a presença desse pátio estendendo-o pela cobertura, criando uma promenade fluida e clara na forma de se deslocar pelo espaço tanto vertical quanto horizontalmente. A nova edificação deve ser tratada como um grande espaço de transição que liga e aproxima o usuário da paisagem, tanto do ponto de vista da experiência sensorial com a Casa Lacerda, seu pátio e sua nova articulação com a cidade, quanto com a mirada do morro que sustenta grande parte do valor histórico da edificação. A partir daí, redesenhou-se o espaço urbano externo à Casa Lacerda, de modo a criar um circuito que começa com o Panteão dos Heroes e amplia o adro a sua frente para privilegiar o pedestre e domar a velocidade e o tráfego de automóveis por meio da troca do piso por blocos de pedra ou concreto condizentes com os diversos pavimentos em paralelepípedo identificados no entorno, bem como pela elevação do nível da Rua XV de Novembro em frente a esse novo espaço coletivo. Essas intervenções levam em conta o conteúdo da carta de Veneza (1964) e, principalmente, da carta de Washington (1986), visando a articular a nova edificação ao contexto urbano maior: “A melhoria do habitat deve ser um dos objetivos fundamentais da salvaguarda. No caso de ser necessário efetuar transformações dos imóveis ou construir novos, todo acréscimo deverá respeitar a organização espacial existente, especialmente seu parcelamento, volume e escala, nos termos em que o impõem a qualidade e o valor do conjunto de construções existentes. A introdução de elementos de caráter contemporâneo, desde que não perturbe a harmonia do conjunto, pode contribuir para o seu enriquecimento.” Carta de Washington (1986) Para tanto, o circuito se amplia para a lateral direita da fachada frontal da Casa Lacerda, e reconfigura o parque infantil como equipamento de uso público, portal de entrada para as funções de educação patrimonial com crianças e jovens que seguem para um pequeno anfiteatro, defronte ao primeiro poço, dedicado a aulas externas, debates e pequenas apresentações artísticas. Esse caminho é seguido de uma horta didática e comunitária que amplia em grande medida a horta existente e se insere na proposta paisagística desse espaço que hoje é tratado como residual. Embora tenha sido considerado como elemento fundamental a ser mantido, o muro que separa a rua do parque infantil da Casa Lacerda, mantido em nossa proposta, pode eventualmente evoluir para um redesenho ou reconfiguração de suas aberturas para reforçar as intenções acima, baseados principalmente nas Cartas de Veneza (1964) e Burra (1980). O circuito leva, na sua metade, ao pátio em tijoleira, e dali diversos caminhos e funções são possíveis, utilizando a cobertura do Anexo. Ele segue na rampa à direita da nova edificação, vista a partir do pátio, que tanto leva ao pavimento superior do Anexo quanto leva à Travessa Brito de Lacerda. Desta via, o circuito se articula aos demais locais de interesse cultural e histórico, valendo-se de sinalização condizente e normatizada pelo IPHAN, bem como de arborização que qualifique esse alongamento do espaço público útil e dilua a noção de muro ou lote da nova proposta. A segurança é garantida, em nossa proposta, por meio de portões recuados nas duas rampas laterais, discretos e que se escondam na vegetação dos muros. Um grande portão de correr vedado por vidro translúcido abre todo o vão do pavimento térreo semienterrado. No primeiro trecho do circuito, a proposta é uniformizar o piso e sinalizar o caminho público, separando seu caráter funcional daquele da tijoleira que se afirma como local de permanência e introspecção. Essa postura pode ser adotada nos demais locais de interesse cultural e histórico e servir de marco visual e conceitual do que se propõe, fazendo eco a tantas estratégias de requalificação urbana com viés turístico bem-sucedidas na região sul do Brasil, especialmente Curitiba, ressalvadas as diferenças nas proporções urbanísticas. O programa se divide em dois pavimentos, sendo o térreo semienterrado conforme sugerido pelo Termo de Referência. No térreo estão as funções administrativas, recepção, biblioteca, e salão multiuso com possibilidade de compartimentação em duas salas. Este se encontra ao fundo do lote, aproveitando-se do arrimo gerado pela escavação. O pé-direito elevado decorre da ligeira elevação do terraço em nova tijoleira, que se articula ao pátio em tijoleira existente. O descolamento dessa laje nas três faces desse espaço e um pergolado de madeira vazado garantem um espaço com luz natural, ajardinado e drenante entre o arrimo e a esquadria do salão multiuso, de modo a minimizar os problemas de umidade e infiltração, além de ambientar, amenizar a sensação de subsolo e ajudar nas taxas de permeabilidade e ocupação do lote. Além disso, as salas multiuso, por sua posição no lote e dimensões, são uma espécie de “coringa” para uma eventual área de exposição de achados arqueológicos que, porventura, venham a existir no lote do Anexo. Tanto podem ser remanejadas, ou transformadas, e deixar o sítio intacto, hipótese em que o terraço superior poderia se transformar no pavimento de acesso e visada das ruínas (à semelhança de emblemáticas arquiteturas contemporâneas, embora cobertas, realizadas recentemente: o novo museu da Acrópole, projeto de Bernard Tschumi; Praça Nova do Castelo de São Jorge, projeto de João Luís Carrilho da Graça; e o abrigo às ruínas romanas em Chur, projeto de Peter Zumthor), quanto, a depender da altura, poder serem visitadas, acessadas pelo pavimento térreo semienterrado, hipótese na qual o salão multiuso viraria uma galeria especial para mostra desses achados. O pavimento superior encontra-se exatamente no nível em que o caimento natural do terreno e a laje se encontram. Garante um acesso lateral rampado, fluido e que contribua para a noção de promenade entre os diversos espaços de transição com vistas enquadradas e modificadas pelo movimento, onde o sujeito pode perceber as diversas miradas, tanto da paisagem distante, quanto do bem tombado. Nele estão as funções mais coletivas e educativas de uma Casa do Patrimônio: a cozinha, o café, a livraria, o espaço de exposições e as áreas de apoio. Estas ficam em um pequeno bloco de concreto aparente que não chega até a laje de cobertura, o que serve a uma dupla função: manter a percepção do vão estrutural e continuidade do plano de cobertura, e servir de local de onde se irradia a iluminação indireta e onde estarão localizados os insufladores de ar-condicionado. O pavimento de cobertura foi o ponto de partida do desenho do projeto e das estratégias de implantação do Anexo. Ele articula as duas premissas iniciais da proposta, a articulação entre escalas diversas da paisagem, especialmente na perspectiva mais urbana, e a arquitetônica por meio de seus espaços de transição. Desta forma, dois planos de “novas tijoleiras” são criados. O deslocamento em duas alturas permite uma permeabilidade visual dupla e mútua, com visadas que enquadram, a partir da Casa Lacerda, a Travessa Brito de Lacerda e denotam as atividades coletivas e de atração dos visitantes no pavimento superior, bem como enquadram a própria Casa Lacerda a partir da mencionada travessa. Assim, os três planos úteis do Anexo se hierarquizam em uma gradação do nível de publicidade e abertura ao público: do mais amplo e acessível espaço de cobertura em terraços, ao térreo mais reservado e privado, passando pelo nível superior em que ocorrerão atividades coletivas abrigadas. Buscou-se uma construção simples, adequada ao terreno e às técnicas mais comuns e acessíveis na nossa cultura construtiva atual, que responda ao clima ameno e proteja principalmente os usuários nos momentos de frio intenso no inverno, deixando o sol entrar de modo regulado e controlado nas fachadas mais críticas. A estrutura é essencialmente formada por elementos de concreto armado, sendo as lajes protendidas, com 25cm de espessura, e os pilares cilíndricos apoiando-as em capitel embutido nelas. Os vidros serão temperados laminados e incolores, sendo que os da fachada principal serão vidros de baixa emissividade e alta transparência. O sistema de climatização será o VRF (Fluxo de Gás Refrigerante Variável), e as condensadoras ficarão alocadas no recuo lateral direito do Anexo (a partir da Travessa), discretamente escondidas do público em função das vigas laterais da edificação. Abaixo dessa laje técnica, está a caixa d´água que abastecerá o térreo semienterrado por gravidade e o pavimento superior por meio de pressurização simples, em função da pequena demanda simultânea que há no pavimento. Os pisos em tijolo do anexo devem, tanto quanto possível, ser da mesma olaria ou fabricante da tijoleira original. Entretanto, faz-se extremamente necessário, para se atender aos ditames das cartas patrimoniais e à prática mais corrente em intervenções contemporâneas no patrimônio histórico e cultural, que essa nova tijoleira seja em um tom diferente, no caso em um marrom escuro acinzentado, somente pela mudança na composição da argila. Isso deverá ser estudado durante o desenvolvimento do projeto em função das possibilidades da tradição local e em conversa com as olarias originais. O agenciamento do paisagismo consiste na articulação dos níveis e pisos reconfigurados e novos terraços que articulam a paisagem em diversos momentos de proximidade e distância. Ele se expande para fora dos dois lotes, buscando reconfigurar o urbano imediato, à frente, na Rua XV de Novembro, como extensão do adro à frente do Panteão dos Heroes e aos fundos como continuação do piso proposto no circuito com arborização e permeabilidade para a infiltração de águas pluviais. Além dessa estratégia mais ampla, o parque infantil recebe novo desenho com arborização e topografia remodelada a partir das golas dessas árvores, um anfiteatro para atividades lúdicas, horta comunitária ampliada e redesenhada com acessibilidade universal, e jardim interno ao salão multiuso. Como forma de amenizar os muros laterais com os vizinhos é proposto um jardim vertical. As taxas de ocupação estão atendidas pelos recuos laterais, frontais e pelo jardim descoberto interno que separa o salão multiuso do arrimo no limite do lote. A taxa de permeabilidade conta com essa área ajardinada e mais um percentual de menos de 50% do piso de concreto permeável que recobre todas as rampas e recuo frontal, além de pequenas aberturas junto aos muros e golas de árvores. |